Menu
In the world

Augusto Aras: “Tivemos uma inédita integração do MP sem mais picuinhas e desavenças”

08/03/2024 19:52
Publicity

Ex-procurador-Geral da República, Augusto Aras, revela dificuldades que encontrou no posto, afirma que trabalhou pela economia brasileira e que sua gestão fortaleceu o Ministério Público

O doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP, Augusto Aras, diz haver trabalhado em prol da economia brasileira e em assuntos relacionados à infraestrutura enquanto foi Procurador-Geral da República, entre 2019 e 2023. Em entrevista à Economy & Law, ele revela as dificuldades que encontrou no posto e que, mesmo assim, as superou e pôde alcançar índices que – garante – foram bastante benéficos para o Brasil. O também mestre em Direito Econômico pela Universidade da Bahia e que é docente na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, atribui a sua experiência de quase 40 anos no Ministério Público Federal (MPF) – onde ingressou em 1987 e ocupou todos os cargos de liderança – a capacidade de superar os desafios. Entre eles, um órgão com conflitos internos por poder, desatenção do MPF a boa parte do país e grandes dívidas. Agora, doutor Aras tem em mente outros propósitos. Se dispõe a ajudar comissões legislativas e considera que a falta de diálogo é o grande mal ao futuro do planeta. Confira a entrevista.

The Winners Economy&Law – Aras, muito se fala do trabalho da Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto a dirimir conflitos. Mas que contribuição, durante sua gestão, o órgão deu à economia?

Augusto Aras – Na nossa gestão, a PGR, pela Terceira Câmara – que é da Ordem Econômica e de Defesa do Consumidor – atuou nos últimos anos de forma intensa. Antes de assumir o cargo de procurador-Geral da República, eu coordenei essa câmara, entre 2017 e 2019, sendo sucedido, até 2023, pelo colega Luiz Augusto Santos Lima. Por ela, conseguimos dar uma grande contribuição, junto a colegas de todo o Brasil, no que toca à infraestrutura ferroviária, aeroportuária e rodoviária brasileira, por exemplo. Também estávamos inciando estudos sobre questões portuárias, especialmente as marítimas, mas não conseguimos avançar devido à chegada da covid.

TWE&L – Essa atuação, então, se focou nos problemas de infraestrutura em empreendimentos relacionados ao escoamento da produção?

AA – Não, fizemos mais. Também buscamos contribuir para a redução dos conflitos que alcançam a economia, especialmente o agronegócio. Temos atividades, hoje, autorregulamentadas, como a da atividade algodoeira do Brasil, que é uma referência mundial, com 85% do mercado autorregulado. Participamos, inclusive, da regulamentação de atividades a relacionadas ao entretenimento e à criação equestre no Brasil, que movimentam algo em torno de R$ 16 bi por ano, um valor muito significativo para ser deixado de lado. Também agimos em questões que dizem respeito à mineração. Há 27 mil projetos de exploração mineral no Brasil. Não podemos dar detalhes em respeito ao sigilo processual.

TWE&L – A pandemia da covid, como o senhor disse, atrapalhou o trabalho da Terceira Câmara nos portos. O senhor considera que foi possível realizar tudo o que seria necessário, da parte da PGR, no que se refere à costa nacional e ao desenvolvimento do país?

AA – Na minha gestão, como PGR, criamos o programa Amazônia Azul, para analisar a situação jurídica das 200 milhas marítimas do Brasil e apresentar propostas efetivas à defesa dos interesses nacionais. Tudo isso parte para a compreensão de que os portos concentram 90% de todas as nossas exportações. Precisamos nos voltar para o estudo dessa área costeira, e esse é um assunto jurídico que nos compete. Não pode ficar para trás, precisa haver segurança jurídica. Aliás, segurança jurídica é fundamental, sem ela o investimento não virá para o Brasil.

TWE&L – Qual é o balanço da sua gestão e qual o legado que o senhor deixa?

AA – Em primeiro lugar, nós reorganizamos e reestruturamos o Ministério Público Federal (MPF) reduzindo as desigualdades regionais. Trabalhamos para equilibrar a presença do MPF (com procuradores, servidores do órgão e recursos). A instituição tinha uns 70% dela atuando entre o sul de Minas e o Rio Grande do Sul e 30% no resto do Brasil. Agora, estamos com o equivalente a 55% do MPF no Sul e Sudeste do país, e 45% no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Essa reestruturação, em termos de pessoal, vem acompanhada da nomeação e da lotação de mais 80 procuradores da República, somente na região Amazônica, com a nomeação de novos servidores e analistas processuais, especialmente, para atender a esses novos procuradores na Amazônia. Tudo isso associado a medidas estratégicas, como a criação da polícia institucional do Ministério Público da União (MPU) para a proteção de membros, de servidores e do patrimônio público da União.

TWE&L – Pode dar mais detalhes do que se fez na Amazônia?

AA – É uma região que tem tudo a ver com o meio ambiente, com a defesa dos indígenas e populações tradicionais. Nós adquirimos aviões anfíbios, adquirimos lanchas para escritórios avançados do MPF, na Amazônia, em lugares de difícil acesso. Por meio da atuação do Ministério do Trabalho, com o nosso apoio, nós adquirimos três grandes barcos hospitalares para atender às comunidades pobres, ribeirinhas. Um deles, o Papa Francisco, é um dos dez maiores do planeta construído para essa finalidade. Conseguimos negociar com o Ministério da Comunicações prioridade na liberação de infraestrutura da comunicação 5G, via satélite, para a Amazônia, o que ajudará muitos procuradores a se comunicarem nessa região remota. Também criamos o Georadar, um sistema informático do MPF – construído pela PGR com assessoramento da Universidade de Lavras – para a apuração de ilícitos e proteção ao meio ambiente e às comunidades tradicionais, indígenas. Diferentemente do que acontecia antes, quando havia uma demora de oito a nove meses para obter essas informações junto a diversos órgãos, agora conseguimos isso em poucas horas, no máximo alguns dias.

Sede da PGR, em Brasília, DF

TWE&L – Mas não houve atenção assim à Amazônia por outras gestões?

AA – Na nossa gestão, a Amazônia foi contemplada como nunca antes ocorrera. Inclusive, nós tínhamos recursos financeiros para comprar os helicópteros para pousar em qualquer local de difícil acesso. Lamentavelmente, com o fim da nossa gestão, não houve interesse da instituição da Polícia Federal em adquirir, com nossos recursos e gestão dela, esses helicópteros para a atuação das instituições que contribuem ao sistema de justiça. Então, do ponto de vista do meio ambiente e das comunidades ribeirinhas, isso foi feito de uma forma muito forte, nunca antes ocorrida.

TWE&L – Por que isso não acontecia antes? Não havia recursos? Por que o MPF estava afastado da Amazônia?

AA – Porque havia interesses eleitoreiros internos. Quer dizer, as pessoas que se submetem a concurso público não querem ir para Tabatinga, para Cruzeiro do Sul, não querem ir para os extremos do Brasil. Querem ir para as grandes capitais, para as cidades próximas delas, para o litoral. Não havia aquilo que a gente aprende desde a faculdade de Direito, que o serviço público não é feito para servidor público, é feito para servir ao público. Essa questão eleitoreira da lista tríplice, de provimento de cargos por eleições internas, sempre gerou esse acomodamento eleitoreiro para que o grupo da Lava Jato se mantivesse ocupando todos os cargos de destaque e aparelhando a instituição, como já foi dito muitas vezes.

TWE&L – E além da Amazônia, o que mais seu legado deixa?

AA – No âmbito criminal, nós não somente criamos 27 Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaecos) federais. Também providenciamos a conexão deles com os Gaecos estaduais, com as polícias Rodoviária Federal, Federal e estaduais, com o Ministério Público dos Estados e, enfim, com o Ministério Público Brasileiro. Além disso, dotamos cada Gaeco de servidores. No Gaeco de Curitiba, aumentamos de um procurador, que era o doutor Deltan Dallagnol, para cinco procuradores no combate à corrupção. Providenciamos, inclusive, a proteção dos colegas atuantes na Procuradoria da República (PR), no Rio de Janeiro. Por exemplo, alguns tinham que estacionar nas ruas próximas a essa sede, o que poderia torná-los alvo de criminosos. Conseguimos estender o estacionamento para esses colegas dentro da PR. E, sem escândalo, nem vazamento, tivemos uma atuação penal com afastamento, prisão, medidas cautelares contra mais de 550 autoridades ou pessoas vinculadas à essas autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça. Na área penal obtivemos 43% de condenações no STF. É o maior índice da história da Procuradoria-Geral da República. Uma das gestões anteriores, que melhor desempenho teve, o máximo que conseguiu foi 20%. Na atividade constitucional, nós fizemos quatro mil teses constitucionais, 85% delas acolhidas pelo Supremo, e estão todas compiladas numa edição impressa e digital à disposição de qualquer cidadão, inclusive na internet.

Aras disse que atuação penal em sua gestão teve índices históricos

TWE&L – E em nível internacional, houve algum avanço, alguma realização de sua gestão?

AA – Sim, na área penal. Nós promovemos acordos internacionais. Fui, por exemplo, à sede da Eurojust (agência da União Europeia para o combate ao crime organizado), em Haia (Holanda), para agilizar o nosso acordo com essa instituição, para atender brasileiros que tenham problemas, inclusive no exterior. Para que não ocorra com nenhum cidadão do nosso país o que houve com duas brasileiras que foram presas na Alemanha, sem necessidade, por crimes que não cometeram no Brasil. Infelizmente, esse tratado até hoje não saiu do papel por motivos burocráticos.

TWE&L – Pelo que o senhor conta, havia coisas a se fazer e que, por algum motivo, gestões anteriores deixaram sem a devida atenção.

AA – Sim. Para você ter uma ideia, o MPF e o MPU tinham um passivo de 20 anos ao que não faziam algum pagamento. Conseguimos saneá-lo quase na totalidade. Também tivemos uma atuação em defesa das mulheres. Do ponto de vista de servidores e membros, criamos um programa de proteção às lactantes e gestantes. Nós também promovemos grandes programas nacionais envolvendo o Conselho Nacional do Ministério Público e a PGR, especialmente no que toca à Corregedoria Nacional das Mulheres, para a proteção das mulheres. E mais: preservamos a qualidade da carreira, com as mulheres, que na nossa gestão, ocuparam os cargos de maior destaque: a vice- -Procuradoria-Geral da República, a Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal, a Secretaria-Geral do Ministério Público, as Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público. Enfim, todos os órgãos superiores da PGR foram ocupados, em grande parte, na maior parte, pelas mulheres. E isso não foi uma política de promoção da mulher, porque a mulher tem tantos méritos ou mais até que os homens. Mas foi para prestigiar aquelas colegas que sempre trabalharam com o coração e com a competência de sempre. As servidoras também ocuparam lugares de destaque nessa nossa atuação.

TWE&L – E para minorias, o que o senhor fez?

AA – Desenvolvemos um projeto estrutural de respeito à diversidade, contra o discurso do ódio e a promoção da tolerância, para reduzir o grau de violência e intolerância vigente no Brasil e também como fenômeno planetário. Esse programa estrutural permanente, salvo engano, já tem mais de 150 instituições participando, foi uma iniciativa com a Confederação Israelita do Brasil (Conib). Também criamos um programa estrutural em defesa das vítimas, tendo em vista que, desde a Constituição de 1988, houve a hipertrofia de um sistema de defesa do acusado, com o abandono da vítima e dos parentes delas, que também necessitam do devido respeito no processo legal.

Ex-procurador, à época no cargo, em reunião na sede da PGR

TWE&L – Mas como as novas gerações de subprocuradores assimilarão tudo isso e levarão à frente?

AA – Implantamos na escola superior do MPU uma nova grade curricular voltada para a formação dos procuradores, no que toca às suas atividades cotidianas, como direito político, direito e economia, direito e meio ambiente sustentável. Introduzimos, pela primeira vez no Brasil, no Ministério Público brasileiro, pela via da escola superior e do CNMP, a disciplina Deontologia do Ministério Público, que é o ensino ao jovem membro do Ministério Público dos deveres para com a instituição, com os seus servidores, com o cidadão que necessita de atuação do Ministério Público, e até mesmo das suas relações pessoais com a família. Também levamos a Filosofia ao Ministério Público, que tem uma proximidade muito grande com o nosso modo de estar, do Ministério Público, no trabalho, no cotidiano.

TWE&L – Vamos fazer um resumo do seu legado?

AA – Nós tivemos uma atuação contundente. E graças ao trabalho de muitos alcançamos índices inéditos. Mas não foi só isso, não. Nós também tivemos uma integração do Ministério Público Nacional, vista pela primeira vez, sem as picuinhas de passado, com a promoção de desavenças que não contribuem para o Brasil nem para a nossa instituição. O que tentei fazer no Ministério Público, em quatro anos, foi – literalmente – promover a instituição com seus caracteres da unidade e da independência funcional, preservando a indivisibilidade por linhas ou por temáticas específicas, sem jamais interferir no trabalho de quem quer que seja, compartilhando as grandes responsabilidades de um procurador-Geral da República com os meus colegas, a quem eu só tenho a agradecer. E, como sempre, desejar ao meu colega Paulo Gustavo Gonet Branco, meu colega de concurso, que foi o aprovado em primeiro lugar, que tenha muito sucesso. Que, de preferência, supere a todos nós que o antecedemos.

TWE&L – E para o futuro, quais são os seus planos?

AA – Minha formação jurídica se estendeu para além da academia, para além da Faculdade de Direito da UnB, com mestrado, doutorado, com ocupação de cargos no Ministério Público, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Eu passei por todos os cargos do MPF, chegando ao ápice da PGR. E, na academia, as minhas disciplinas de direito público-privado sempre me propiciaram uma visão mais ampla do direito, seja como instrumento de pacificação social, seja como integrativo, no que diz respeito a direitos e garantias fundamentais. Então, a tudo isso precisa ser dada alguma utilidade. Porque viver, necessariamente, impõe que sejamos úteis ao nosso tempo. E eu continuarei fazendo palestras, escrevendo, eventualmente dando alguma aula magna. Minha carreira acadêmica também está concluída com anos de serviço. Eu espero poder contribuir também com outros espaços públicos, como no Congresso Nacional, no Senado, na Câmara, em comissões de estudos legislativos.

Imagem noturna da sede da PGR

TWE&L – O senhor pensa em se candidatar?

AA – Não, não. Posso ajudar comissões com projetos de lei aos que possamos levar nossa experiência, nossos conhecimentos. Eu já fiz parte de três comissões de juristas, como a do Código de Processo Civil Coletivo. Também colaborei com a Comissão de Juristas da Reforma Eleitoral de 2009, e fiz parte dos estudos para a lei de propriedade intelectual, que já foi editada, entre outras tantas.

TWE&L – E, por falar em futuro, como o senhor analisa o do mundo ante todas essas mudanças trazidas pelas redes sociais, pelas novas tecnologias, especialmente a inteligência artificial. Ainda mais agora com conflitos bélicos?

AA – O maior problema do planeta até este momento é a falta do diálogo. A boa política sempre se fez com diálogo. Sem diálogo, o que resta é a polarização e, em seguida, a violência e a guerra, a divisão na família, entre amigos. A ausência de diálogo é a própria desumanização. Quando perdemos a capacidade de respeitar a opinião contrária, de tolerar o diferente, quando passamos a promover discursos de ódio e discriminatórios, nós estamos retrocedendo no nosso processo civilizatório, que tem, na minha opinião, como sua maior conquista, a democracia. É preciso que nós voltemos a dialogar e a respeitar os diferentes, especialmente, combatendo o discurso do ódio e promovendo a tolerância. É preciso que as grandes nações, especialmente elas, voltem a pensar na biosfera e no conjunto. Somos todos integrantes do mesmo ambiente. É necessário mais empenho pelo diálogo, assim garantiremos o bem-estar e a paz social.

Continues after advertising