Eloisa Arruda: uma voz feminina de destaque na Justiça brasileira
A caminhada foi bem-sucedida, mas marcada por muitos desafios. Foi a primeira geração de sua família a obter acesso ao Ensino Superior. Seus pais, ele cearense do Juazeiro do Norte e ela mineira de Paracatú, migraram para São Paulo nos anos 1950 para construir uma vida digna, sem privações. Casaram-se, trabalharam muito e concretizaram o sonho de ver a filha na universidade. Ela seguiu adiante, procurando honrar a história e os esforços deles. Construiu carreira universitária na PUC-SP, onde fez graduação, mestrado, doutorado e leciona nos cursos de graduação e pós-graduação desde 1989. Também ocupou funções administrativas, como Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal, durante oito anos, e Coordenadora do Curso de Direito, durante dois anos. Sempre priorizando a educação e o conhecimento, fez especializações no exterior, na Universidad de Castilla y La Mancha, na Espanha, e na George August Universität-Göttingen, na Alemanha. Conhecida por sua trajetória sólida no Ministério Público de São Paulo, ocupou posições de destaque que permitiram defender suas ideias, colaborar na construção de uma sociedade mais igualitária e deixar um consistente legado. Na vida pessoal, usa seu tempo livre com a família. Seus filhos, Danilo e Deborah, também são seus amigos, parceiros, que adoram viajar ou simplesmente fazer uma caminhada juntos. Hoje, esses momentos estão mais escassos, pois Deborah atua como médica do Exército Brasileiro e serve na Amazônia, e Danilo trabalha para uma empresa multinacional e viaja com frequência para o exterior. Além da literatura – em que se diz impactada com a trilogia “Escravidão” de Laurentino Gomes, “Torto Arado” de Itamar Vieira Junior e “O avesso da pele” de Jeferson Tenório, todos para uma melhor compreensão do nosso Brasil – é apaixonada por gastronomia, gosta de cozinhar e defende a ação como “forma de expressar amor e amizade”. Essas são as muitas faces de uma mulher forte que aprendeu a firmar seu ponto de vista com sabedoria e aplicar seus dons e talentos a serviço do bom caminho.
Confira o que pensa Eloisa Arruda e os detalhes de sua trajetória.
The Winners – São mais de 30 anos atuando na área, somando as posições de Promotora de Justiça, professora universitária, gestora pública e advogada. Como foi essa caminhada e os desafios até aqui?
Eloisa Arruda – Sempre fui muito estudiosa, ingressei na Faculdade de Direito da PUC-SP em 1979, aos 17 anos, e no ano seguinte prestei concurso público para escrevente do Tribunal de Alçada Criminal e fui aprovada. Trabalhei e estudei durante todo o curso de Direito com a certeza de que queria ser Promotora de Justiça. Me espelhava nos excelentes professores que tive, a quem admirava e reverencio até hoje. Prestei o concurso para o Ministério Público de São Paulo (MPSP) no ano seguinte ao da minha formatura e fui aprovada. Ingressei na carreira em 1985, aos 23 anos de idade. Permaneci na instituição por 32 anos. Atuei durante quase 20 anos no Tribunal do Júri. Foi uma experiência de grande crescimento pessoal e profissional, lidar com os crimes contra a vida. Conhecer o ser humano do limite extremo das suas emoções que podem levá-lo ao desatino fatal. A carreira no MPSP é longa e permite a participação em inúmeras frentes. Eu fiz isso na medida do possível. Fui diretora da Associação Paulista do Ministério Público, participei de comissões legislativas visando a alterações do Código de Processo Penal, fui monitora em inúmeros cursos de adaptação para promotores substitutos, participei como membro eleita no Conselho Superior do Ministério Público e também fui eleita para dirigir a Escola Superior do Ministério Público. Além de integrar o MPSP, construí carreira universitária na PUC-SP. Acho importante a experiência acadêmica no exterior e por isso realizei duas especializações fora do país Sempre me interessei por geopolítica e acompanho a história dos conflitos mundiais e do trabalho das organizações internacionais na área de Direitos Humanos. Para minha grande satisfação, em 2000 fui convidada a participar do processo seletivo promovido pela ONU, para a escolha de promotores que atuariam no Tribunal Penal Internacional de Timor Leste. Meus dois filhos, Danilo e Deborah, eram crianças (sete e seis anos) e eu nunca havia me distanciado deles por mais de quinze dias de férias quando iam para a casa dos avós em Paracatú. Tinha certeza de que queria participar da missão, mas precisava de tempo para organizar a vida, me preparar e preparar as crianças para a separação. A demora de um ano terminou sendo providencial. Assumi a missão, do outro lado do mundo, em agosto de 2001. Era a única brasileira no time de nove promotores. Foi uma experiência que marcou intensamente a minha vida. Em 2011, a convite do então governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, tornei-me a Secretária de Justiça e da Defesa da Cidadania, atuação técnica e política. O trabalho consistia na proposição e implementação de políticas públicas visando à garantia dos direitos humanos e ao acesso à cidadania para população do Estado de São Paulo, espalhada pelos seus 645 municípios. Entre as principais atividades que desenvolvi e coordenei, estão os programas para proteção e apoio a vítimas e testemunhas ameaçadas de morte, imigrantes e refugiados, mulheres vítimas de violência doméstica, dependentes químicos, vítimas de trabalho escravo e tráfico humano, população LGBTI, além de projetos para o enfrentamento ao racismo e à homofobia. Permaneci como Secretária da Justiça e da Defesa da Cidadania por quatro anos. Posteriormente, fui convidada pelo então prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, para ser a Secretária de Direitos Humanos e Cidadania do município. A atuação consistia no desenvolvimento de políticas públicas para imigrantes e refugiados, mulheres vítimas de violência doméstica, dependentes químicos, idosos, população negra e LGBTI, entre outras. Desempenhei essa função por dois anos. Continuo com minha carreira acadêmica na PUC-SP e agora exerço a advocacia com muita honra. Sigo sempre a lição da poetisa goiana Cora Coralina ao refletir sobre a vida, sobre os obstáculos e sobre o futuro: “Desistir… eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério; é que tem mais chão nos meus olhos do que o cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos, do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça”.
TW – Na sua formação, tornou-se especialista na área de Direito Criminal, onde atuou como Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por mais de 30 anos. A senhora julga esse segmento mal interpretado pela sociedade? Como acontece o exercício da justiça criminal no Brasil?
EA – A percepção da sociedade a respeito da justiça criminal brasileira não é boa. Há um sentimento generalizado de impunidade que, em parte, corresponde à realidade. Grande volume dos crimes, alguns graves, não é devidamente apurado por falta de estrutura nas polícias, o que dificulta ou impossibilita o trabalho dos órgãos que dependem de uma investigação eficaz, como o Ministério Público e o Judiciário. E quando a justiça responde a contento, nem sempre a vítima ou a sociedade são informadas do resultado do processo criminal. Fica a sensação de que não deu em nada, que não houve resposta penal para o crime. Considero, no entanto, que há expectativas excessivas em torno da resposta criminal aos desvios de conduta na sociedade, ou seja, espera-se que a Justiça Criminal se mobilize e coloque atrás das grades todo aquele que cometeu um desacerto social. Por óbvio, as graves violações devem ser punidas com encarceramento, até para que uma pessoa que represente risco seja contida. Todavia, vejo hoje a possibilidade de utilização de meios alternativos de solução de conflito, com a aplicação de institutos do processo penal consensual, que podem trazer mais resultados para a responsabilização do autor da conduta, a satisfação da vítima de crime e a agilidade da resposta penal. Isto é, o rígido e longo formalismo da Justiça Penal pode ficar reservado para os crimes mais graves e que possam resultar em prisão. Estamos iniciando a construção desse caminho no Brasil. Será um aprendizado para todos os que atuam na Justiça Criminal. Vejo isso com bons olhos.
TW – Com a experiência na área de Gestão Pública, o que a senhora destaca quando está na posição de professora? Qual é sua visão sobre a realidade da educação brasileira na área do Direito?
EA – Considero que passamos por grandes avanços no Brasil. Na área do Direito, houve significativa expansão de vagas nos últimos 30 anos, garantindo que muito mais pessoas tivessem acesso à formação nessa área. Além disso, o sistema de cotas e de financiamento público de vagas para estudantes de baixa renda permitiu, a uma parcela da população que estava totalmente excluída, a conquista do sonho de cursar uma universidade. O desafio presente é a qualidade do ensino que as instituições oferecem. Estamos falando das tradicionais, que não podem se acomodar nas práticas que sempre mantiveram, pois estão recebendo alunos diversos, com diferentes graus de deficiência no aprendizado vindos do Ensino Fundamental e Médio. E estamos falando também das novas instituições que criaram milhares de vagas e que precisam ter a responsabilidade de bem formar pessoas que estão ali buscando uma mudança de vida pessoal e familiar.
TW – Além de ter ocupado a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, esteve à frente da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Como essas atuações se convergem? O que é possível atender em ambas as funções para promover mais garantias ao cidadão e, ao mesmo tempo, garantir seus direitos e deveres?
EA – As duas pastas trabalham na implementação de políticas públicas para a promoção dos direitos humanos, aí compreendida a identificação de vulnerabilidades sociais de algumas populações e o suporte para que possam adquirir autonomia e conquistar dignidade plena com a garantia de seus direitos constitucionalmente reconhecidos e o cumprimento de deveres perante a comunidade em que vivem.
TW – Ao longo de sua carreira, percebemos a criação e implantação de vários projetos capazes de promover o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, tanto no âmbito da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo (SJDC) quanto na Secretaria Municipal de Direito Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC). Poderia indicar os projetos que considerou mais relevantes?
EA – A SJDC foi a oportunidade de maior aproximação que tive com mulheres em situação de vulnerabilidade. Rica experiência! Aproximei-me das mulheres do campo, que lidam todos os dias trabalhando na terra, de sol a sol, produzindo os alimentos que vão para os pratos das nossas famílias, mulheres maravilhosas, fortes, dignas, muitas delas arrimo de suas famílias; mulheres quilombolas, lutando para preservar suas tradições e sua cultura, orgulhosas do passado de luta, resistência e superação dessas comunidades; as mães dos dependentes químicos, com histórias de perseverança e coragem: nunca desistem dos filhos. Em relação a estas, o meu acolhimento muitas vezes foi físico: segurar as mãos, abraçar, olhar nos olhos e às vezes chorar junto. Elas queriam compartilhar o drama e pedir ajuda. Em parceria com o Fundo de Solidariedade do Estado de São Paulo, implantamos nos Centros de Integração da Cidadania (CICs), as Escolas de Moda e de Beleza e as padarias artesanais. Esse trabalho reforçou a minha vontade de trabalhar pela criação, no ano de 2012, da Coordenado[1]ria da Mulher, no âmbito da Secretaria da Justiça, com o objetivo de produzir políticas públicas para a população feminina de nosso Estado. Foram muitos projetos e ações importantes nas mais diversas áreas: o combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo; a ampliação do atendimento e apoio às vítimas de crimes graves (CRAVI); a criação do programa de proteção a crianças ameaçadas de morte (PPCAM); as ações para combater a homofobia e o racismo; os programas de atenção aos dependentes químicos e seus familiares; a criação do Programa Paulista de Agricultura de Interesse Social (PPAIS), para garantir a comercialização dos produtos da agricultura familiar com órgãos públicos; a utilização dos recursos do Fundo de Interesses Difusos (FID) para inúmeros projetos ambientais; a construção de fóruns; e o restauro do prédio histórico da Secretaria da Justiça. Na Secretaria Municipal de Direitos Humanos destaco o Programa Mães de Luz, objetivando o acolhi[1]mento de dependentes químicos e seus familiares. Foi muito importante também a ampliação dos projetos para imigrantes e refugiados, já que nos últimos anos o Brasil tem sido o destino de muitos deslocamentos humanos. Sempre trabalhei com metas e objetivos claros. Isso é fundamental quando assumimos um cargo por um período pré-determinado. Fiz do tempo um grande aliado na minha gestão na SJDC e da SMDHC. Sou grata ao Governador Geraldo Alckmin e ao Prefeito João Dória pela confiança que em mim depositaram e pela oportunidade de dedicar a minha energia e os meus conhecimentos à causa pública
TW – No conjunto de sua trajetória, ser a única mulher brasileira indicada pela ONU para atuar no Tribunal Penal Internacional para crimes graves em Timor Leste é um grande feito. Como a senhora vê sua participação nesse tribunal? Como seu trabalho serve de inspiração para outras mulheres?
EA – Como disse, precisei resolver questões familiares para estar lá. Não foi fácil, mas eu tinha a certeza de que queria participar do projeto e fiz o melhor possível para organizar a ida. A proposta foi para um trabalho inicial de seis meses com possibilidade de prorrogação. O processo de seleção foi longo. Entre o envio de meu currículo e dos documentos exigidos até a resposta final de aceitação, passou-se um ano. Ficou claro na Offer of Appointment que se tratava de missão em área de risco e que era proibido fazer-se acompanhar de familiares. Obviamente, eu conhecia essa vedação desde o princípio e confesso ter sido o único dilema que enfrentei na aceitação da missão. Felizmente pude contar com o apoio dos meus pais e de muitas outras pessoas que compreenderam a importância do trabalho que eu iria realizar e se dispuseram a cuidar das minhas crianças com carinho e dedicação. Estando lá, os desafios e privações não foram poucos, desde o clima tropical úmido, com temperaturas constantes acima dos 30 graus, passando pela precariedade de moradia para os internacionais, inexistência de água potável, inexistência de saneamento básico, falta diária de energia elétrica, até a possibilidade constante de se contrair doenças, como malária, febre amarela, dengue e cólera. Havia também muitas dificuldades na realização do trabalho na Promotoria. Entre as principais, estava o fato de alguns casos envolverem dezenas de vítimas de massacres. A busca da prova material dos crimes era lento, pois os cadáveres precisam ser exumados. E convivíamos com a precariedade de acesso a alguns locais do país. As estradas que existiam eram estreitas e malconservadas e, em muitas localidades, a equipe de investigação não tinha onde se alojar. Assim, não foi incomum levarmos material para acampamento e suprimentos para sobrevivência, caso precisássemos permanecer por mais de um dia. Era presente também a questão da diversidade linguística. Apenas uma pequena parcela da população falava português. A maioria falava apenas tetum (língua mais conhecida em Timor Leste, dentre mais de trinta existentes) e bahasa indonésio (língua ensinada nas escolas na época da dominação Indonésia). Tal diversidade refletia-se, sobretudo, na coleta da prova oral. Por vezes, trabalhavam dois intérpretes, pois a testemunha falava tetum e os juízes e promotores, inglês. Em outras situações, o juiz timorense, que obrigatoriamente compunha o colegiado do Painel de Crimes Graves, falava tetum enquanto os outros dois juízes internacionais falavam inglês e a testemunha comunicava-se em bahasa indonésio. Assim, as audiências eram longas e cansativas. Esses eram apenas alguns dos desafios que a equipe de promotores enfrentava. Também acompanhei as primeiras eleições para a formação da Assembleia Nacional Constituinte, que depois escreveu a Constituição do país, e em seguida as eleições presidenciais que elegeram Xanana Gusmão presidente da república. Vi nascer a primeira nação do novo milênio. Tudo sob a administração de Sérgio Vieira de Mello, grande brasileiro! Com todas as agruras, foi extremamente gratificante ter participado da missão e contribuído mesmo de forma ínfima, para o nascimento da nova nação, além de ter a possiblidade de trazer para o meu país a experiência de um trabalho com foco na apuração de violações aos direitos humanos e na punição de seus autores.
TW – Como a senhora vê a posição das mulheres no judiciário brasileiro?
EA – Em relação às mulheres, considero que o mundo do trabalho caminha para ser cada vez mais híbrido, pois temos demonstrado que o que faltava era espaço para atuar, e não competência e dedicação. As nossas histórias individuais são de superação de limites. Para algumas, os obstáculos e dificuldades são maiores, tendo de conjugar horas intermináveis de estudo com o trabalho e/ou o cuidado dos filhos, maridos e pais idosos. O importante é que sigamos nossos caminhos com coerência e autorrespeito. Podemos ser modelo para muitas mulheres que ainda não conquistaram seu espaço de plena dignidade. A nossa condição feminina não nos fragiliza, nos fortalece. Ainda sou de uma geração do MPSP em que eram poucas as mulheres que ingressavam na carreira. A igualdade de gênero vem sendo construída aos poucos, na medida em que avança o número de aprovadas no concurso de ingresso. Com o passar do tempo, além de estarem exercendo suas funções nos quatro cantos do Estado, nas mais diferentes funções, as promotoras começaram a conquistar espaço na administração superior da instituição. Infelizmente, São Paulo ainda não teve uma mulher como Procuradora-Geral como já ocorreu em muitos outros Estados da federação.
TW – A senhora esteve à frente da Escola Superior do Ministério Público e conhece bem o funcionamento do MP, como vê a instituição hoje? Quais são os pontos de renovação?
EA – A Instituição já se afirmou (em especial, nas últimas três décadas) como a grande porta-voz da população brasileira. Hoje, em todas as frentes e em todo o território nacional, há um promotor pronto a defender a sociedade. Há enfrentamentos específicos. Crime, corrupção, “colarinho branco”, consumidor, meio ambiente, direitos humanos, família, infância, combate à improbidade, combate à violência doméstica são algumas das vertentes de trabalho do Ministério Público. No âmbito criminal, o momento é de transição. Acostumados ao processo penal de concepção colonial, o MP brasileiro precisa hoje lidar com as corporações do crime. Assim, novos mecanismos de produção de prova merecerem atenção mais atual. Destaco a delação premiada, a infiltração de agentes, o cruzamento de dados de inteligência e o fortalecimento de ações penais contra a corrupção e o poder político. Com isso, há necessidade de investimentos orçamentários, priorização institucional e crescimento da concepção de uma Justiça Penal que assegure ao povo os bens que estão sendo subtraídos dele. Não individualmente, como é da nossa história. A proposta é o combate coletivo, para proteger de forma ampla. O furto de um celular, por exemplo, é infinitamente menor e menos relevante do que o desvio de verbas ou a lavagem de capitais, que carregam a negação de acesso à saúde pública, ao ensino e a uma vida digna, que nosso povo merece. Equipar e estruturar o Ministério Público para acompanhar esse grande momento de transição institucional deve ser o foco. No caso do Ministério Público de São Paulo, considero imprescindível que seja atendida uma expectativa de longa data, a possibilidade de Promotores de Justiça poderem concorrer ao cargo de Procurador Geral de Justiça, realidade dos outros Estados brasileiros (com exceção de Roraima). Este posto só é acessível hoje em São Paulo a procuradores de Justiça, visto que a carreira se imobilizou e assim permanecerá por um longo período. Viabilizar a eleição de promotores ao cargo de Procurador-Geral ensejaria oxigenação efetiva do Poder. Após a transformação, a classe, por certo, veria surgir novas lideranças em todo o Estado. Novas ideias e projetos de modernização. A mudança daria muito mais legitimidade à implantação dos projetos sociais e políticas públicas debatidos com a população.
TW – O Supremo Tribunal Federal tem sido acusado de ativismo judicial. Na sua avaliação, essa crítica procede?
EA – O ativismo judicial, em qualquer grau de jurisdição, pode ser positivo ou negativo. Será positivo quando a decisão proferida pelo órgão judiciário tiver o condão de impulsionar os demais poderes a tomarem iniciativas prementes e necessárias, ou quando a iniciativa de membros do Poder Judiciário encontrar meios para agilizar a Justiça. Será negativo quando magistrados interferirem indevidamente nos outros Poderes de Estado, sem avaliar as consequências paralelas de seus atos. Portanto, o que importa é que o ativismo judicial seja praticado com comedimento, em decisão bem refletida, fundamentada e que possa ser executada, pois de nada adianta proferir uma decisão cujo cumprimento seja inviável, sob pena de desmoralização do Poder Judiciário.
TW – A atividade empresarial, que antes apresentava apenas um risco econômico/financeiro para o empresário, hoje apresenta também um efetivo risco criminal. Como o empresário poderia se precaver deste risco? Qual é a importância do compliance nesse contexto?
EA – Na sociedade global e pós- -moderna, ocorreu inegável hipertrofia do Direito Penal, ou seja, uma expansão de normas incriminadoras como mecanismo de segurança e de controle social. Efetivamente, a modernidade trouxe riscos inusitados e novos bens jurídicos passaram a depender de tutela penal. De um lado, têm-se as condutas delitivas de alto grau de violência, como o sequestro seguido de morte, o latrocínio e o estupro seguido de morte. De outro, os delitos ligados à sonegação de impostos, à corrupção e ao desvio de dinheiro público, ao tráfico de pessoas e de armas, que contribuem para o agravamento das mazelas sociais nos países menos desenvolvidos. Trata-se de infrações que se enquadram na complexidade do crime organizado e transnacional, tendo como agentes indivíduos que se beneficiam do aparato tecnológico e das facilidades que o mundo proporciona a alguns. Nesse contexto de expansão do Direito Penal, novos mecanismos processuais têm sido criados visando à atuação eficiente do sistema de justiça sem ferir os marcos do Estado de Direito. As corporações nem sempre estão devidamente informadas e assistidas sobre o que se convencionou chamar de Direito Penal Econômico, que abrange normas sobre o sistema financeiro, o sistema tributário, o sistema previdenciário, as relações de consumo, entre outros. Some-se a isso a falta de preparo para lidar com órgãos públicos em eventuais contratações. Por vezes, mesmo sem terem agido de forma intencional, vemos empresas envolvidas em mazelas criminais que podem comprometer sua credibilidade e até sua existência. Daí a importância do compliance como prática permanente, a fim de proporcionar segurança e minimizar riscos de instituições e empresas, garantindo o cumprimento de atos, regimentos, normas e leis estabelecidas interna e externamente.
TW – Para concluir, qual balanço a senhora faz das conquistas que o Brasil teve no sistema judiciário ao longo dos anos?
EA – Considero que tivemos grandes conquistas no nosso sistema judiciário nos últimos anos e isso se deve principalmente à edição da Constituição de 1988, que procurou adequar-se à concepção contemporânea de cidadania, com raízes na Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948. Do rol de direitos fundamentais, o mais amplo de toda a história constitucional brasileira, constam em igualdade de tratamento e proteção os direitos civis e políticos e os direitos sociais, econômicos e sociais. Em relação à universalidade dos direitos humanos, tendo o texto da constituição declarado a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), já assegurou a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais a toda e qualquer pessoa, sem discriminação. Além disso, consagrou a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios a reger o Brasil na ordem internacional (art. 4º, II) e estabeleceu cláusula constitucional aberta a receber outros direitos, inclusive decorrentes de tratados internacionais (art. 5º, § 2º), realçando que os direitos humanos são tema de legítimo interesse da comunidade internacional, transcendendo as fronteiras do Estado. Também houve a especificação de sujeitos de direito, já que foram incluídos capítulos dedicados, por exemplo, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso e aos indígenas. Assim, a algumas categorias é deferido tratamento jurídico especial e diferenciado, atendendo suas particularidades. A Carta de 1988 trouxe ainda a inovação de expandir a dimensão dos direitos e garantias, não mais se limitando a assegurar direitos individuais. O texto incorpora a tutela dos direitos coletivos e difusos. Diante dessa nova gama de direitos estabelecidos, o sistema de justiça precisou se qualificar e ampliar seu modo de atuação. Nossas instituições foram criadas, como a Defensoria Pública, e outras fortalecidas, como o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário. Além disso, foram criados órgãos de controle como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, com a participação da sociedade civil. Hoje, o sistema de justiça está sendo provocado a dar resposta às demandas decorrentes dos direitos e garantias previstos na Constituição. Trabalho gigantesco de expansão de saberes, mas gratificante na medida em que se torna mais próximo do povo brasileiro.
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