Antonio Dias Toffoli: a voz do bom senso
José Antonio Dias Toffoli, ou apenas Ministro Dias Toffoli, como é conhecido hoje, é graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Chegou a ser diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, onde pôde praticar a arte do diálogo e da oratória. Filho do cafeicultor e marceneiro Luiz Toffoli e da professora e catequista Sebastiana Seixas Dias Toffoli, nasceu em Marília, no interior de São Paulo, é o oitavo de nove filhos em uma família de cafeicultores descendente de italianos e bastante católica, deixou a vida na fazenda para cursar Direito e graduou-se em 1990. Logo iniciou sua atuação como advogado na capital paulista. Entre o período de 1991 e 1995, atuou também como consultor jurídico do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores (1993-1994) e foi assessor parlamentar do deputado Arlindo Chinaglia na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (1994).
Em 1995 partiu rumo à capital federal, Brasília, como assessor jurídico da liderança do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados, onde permaneceu até 2000. Atuou em momentos importantes do partido como advogado nas campanhas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1998, 2002 e 2006.
Em 2001 retornou a São Paulo e desempenhou um papel fundamental, ao lado da então prefeita Marta Suplicy, como chefe de gabinete da Secretaria de Implementação das Subprefeituras do Município de São Paulo, onde reorganizou o sistema das subprefeituras. Atuou por alguns anos na advocacia privada, até ser convocado para estar em Brasília novamente. Exerceu a posição de subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil da Passeio pelo prédio do STF Presidência da República de 2003 a 2005 e, em 12 de março de 2007, foi nomeado advogado-geral da União.
Reconhecido por seus mestres como muito estudioso, aplicado, criativo e audacioso nas propostas, tinha também bom humor no trato com pessoas e situações. Com o passar dos anos, construiu sua carreira pautada no diálogo e na moderação, tornou-se um especialista em construir soluções jurídicas capazes de unificar e apaziguar opiniões controversas. Sempre uma voz de bom senso, que trata com serenidade os diferentes.
Nessa trajetória tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em 23 de outubro de 2009, e, em 13 de setembro de 2018, foi empossado como presidente do STF, sendo o ministro mais jovem a assumir essa função, aos 50 anos. Nesta entrevista exclusiva, o leitor pode conhecer um pouco mais sobre o pensamento do Ministro Dias Toffoli e conferir o pensamento articulado em prol da democracia que lhe é tão característico.
The Winners Economy & Law – Durante a cerimônia de entrega da Medalha de Honra ao Mérito Jurídico, o senhor destacou uma frase de San Tiago Dantas sobre a importância de estender à população, de forma ampla, a democracia e a liberdade para mantê-la viva em nosso País. Como o senhor vê esse processo na sociedade brasileira?
Dias Toffoli – A frase de San Tiago Dantas que citei naquela ocasião é o alerta de um homem público visionário sobre a necessidade de estendermos os benefícios da democracia e do desenvolvimento a todas e a todos, o que representa exatamente a meta delineada claramente no artigo 3º da Constituição de 1988: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e o imperativo de se promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
O balanço que faço dos últimos 33 anos, desde a promulgação da Constituição, é muito positivo. Sob o regime democrático, o Brasil avançou em muitos campos, a começar pela estabilização da economia promovida pelo Plano Real, com o controle da inflação e o fortalecimento da moeda, fundamentais para o combate à desigualdade no País. Os ganhos da estabilização tornaram possível, por exemplo, do final da década de 1990 ao final da década seguinte, que mais de 45 milhões de brasileiros abrissem contas bancárias, o que equivale à população inteira da República Argentina. Exemplos como esse dão a dimensão da vitalidade da economia e da sociedade brasileiras.
Também é marca do período democrático a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja importância todos nós testemunhamos durante a pandemia da Covid-19 no Brasil. É preciso lembrar também que, a partir de 2000, foram criados programas de alcance nacional de transferência de renda que atendem, ainda hoje, a dezenas de milhões de brasileiros. É bem verdade que continuamos com problemas pendentes, como as profundas desigualdades sociais e regionais, a pobreza, a marginalização, a situação de risco de crianças e jovens e as violências doméstica e de gênero. Esses problemas são grandes barreiras à concretização da cidadania, da paz social e da justiça entre nós.
Mas essas barreiras são tranponíveis, e o caminho para isso já foi aberto pelos avanços que citei anteriormente. É preciso, no entanto, ter sempre em mente que as crises econômicas afetam justamente os mais vulneráveis, como temos visto durante a pandemia.
TWE&L – Um dos desafios apresentados, não apenas por San Tiago Dantas como por outros grandes juristas e humanistas, é que o futuro da civilização depende da capacidade de preservar a paz. Em um momento de pós-pandemia mundial e em que vemos tantos ataques à democracia, ao meio ambiente, à diversidade, como o senhor acredita que a sociedade possa encontrar o caminho para o entendimento e a paz futura?
DT – Estou convencido de que o reencontro com esse caminho, o da construção de consensos, passa pela política e pela convivência democrática. As instituições democráticas e a sociedade deram respostas firmes às orquestrações antidemocráticas perpetradas recentemente no Brasil. Nesse contexto, o exercício da autoridade é fundamental para proteger essas instituições de ataques como os que testemunhamos nos últimos anos em algumas das mais tradicionais democracias do mundo.
As instituições democráticas, no caso brasileiro, não se deixaram intimidar por essas orquestrações e, com o apoio amplamente majoritário da sociedade, têm feito valer as regras do Estado Democrático de Direito, no qual a liberdade de expressão não serve de escudo para criminosos que buscam semear o caos social e provocar retrocessos institucionais.
A retomada do diálogo e a recuperação da empatia, a começar por nossos círculos familiares e de amizades, são o primeiro passo necessário para reconstruirmos pontes e consensos em torno dos destinos do País. O mesmo raciocínio se aplica às forças políticas e aos atores sociais, que precisam retomar o diálogo e a capacidade de negociar soluções, sem cair na tentação do sectarismo e da desqualificação daqueles que pensam diferente.
TWE&L – Durante o desenvolvimento do Brasil, registramos um rápido avanço em alguns setores, mas fomos insuficientes na área social. O País ainda registra profundas desigualdades sociais e regionais, a pobreza, a marginalização, a situação de risco de crianças e jovens, a violência doméstica e de gênero, entre outros. Quais são os caminhos para a resolução desses problemas?
DT – Os últimos 33 anos de convivência democrática no Brasil, o mais longo período democrático da história da República, apontam o caminho, que é o da capacidade de dialogar e de construir consensos. Países capturados pela polarização e pelo sectarismo político não avançam, e a história do Brasil mostra que, com diálogo, é possível avançar. Vencemos muitos desafios democraticamente, mas ainda restam problemas acumulados ao longo da história, e a desigualdade é o principal deles. Temos que conferir prioridade absoluta a esse esforço de combate à desigualdade, que voltou a crescer em razão da pandemia. É uma tarefa que não pode esperar e que vai exigir foco e as melhores energias dos brasileiros por várias gerações. Não chegamos a esse quadro do dia para a noite; tampouco sairemos dele por um passe de mágica. Mas as conquistas das últimas décadas no plano social indicam o caminho no qual temos que perseverar.
TWE&L – Entre as vitórias do Brasil podemos apontar com destaque a criação e efetivação do SUS – Sistema Único de Saúde. Ele é reconhecido mundialmente pela sua capacidade de atendimento e abrangência. No entanto, o sistema está defasado e precisa de atenção. Como o senhor vê esse paradoxo?
DT – A realidade da pandemia mostrou que o SUS esteve à altura das duras circunstâncias que o Brasil teve de enfrentar. Mostrou o acerto dos movimentos sanitaristas das décadas de 1970 e 1980 e especialmente de nossa Constituição de 1988, que estabeleceu a saúde como um direito de todos e dever do Estado, universalizando o acesso às ações e aos serviços de saúde a toda a população brasileira. O SUS é uma grande conquista da sociedade brasileira, beneficia os mais pobres e é capaz de atender todo o País em situações de emergência sanitária como a que o mundo viveu a partir de março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia da Covid-19.
TWE&L – O Brasil tem um programa contínuo de transferência de renda desde o ano 2000, que atende a dezenas de milhões de brasileiros. No entanto, muitos especialistas acreditam que as ações deveriam ser voltadas para o desenvolvimento de geração de oportunidades locais de emprego e renda. Como o senhor vê essa controvérsia?
DT – Não vejo as duas linhas de atuação como excludentes. Considero que assegurar condições mínimas de sobrevivência é um imperativo da realidade em uma sociedade com altos níveis de desigualdade e de vulnerabilidade social como a nossa. Não creio haver esse dilema, essa controvérsia, tendo em vista as urgências dos brasileiros mais pobres. O Estado brasileiro precisa estar atento a eles, não só no combate à fome, mas também no acesso a oportunidades que promovam sua ascensão social. O programa de transferência de renda brasileiro tem resultados reconhecidos internacionalmente, e, na pandemia, o auxílio emergencial foi elemento fundamental para manter a paz social no País. Não tenho dúvidas a esse respeito.
TWE&L – O setor de agrobusiness é um exemplo de inovação e tecnologia, ao mesmo tempo que sofre discriminação pelos ambientalistas. Como o senhor vê situações como essa no Brasil? O que falta para termos uma unidade de ações que levem ao desenvolvimento em todas as áreas, uma vez que temos legislações desiguais nos setores?
DT – O agronegócio brasileiro é um exemplo indiscutível de êxito, e o agronegócio moderno do País já incorporou as demandas mundiais pelo respeito ao meio ambiente. Digo mais: o Brasil conta com a sustentabilidade ambiental de suas operações na produção de alimentos como aliada na disputa por mercados em todo o mundo. Para o agronegócio exportador, as demandas da sustentabilidade estão incorporadas ao cotidiano de suas operações. O avanço do agronegócio, nos últimos 60 anos, é resultado de uma união de esforços ampla, que envolveu o investimento do Estado brasileiro em ciência e em tecnologia, em instituições como a Embrapa, e seu apoio aos produtores na forma de crédito, fomentando o espírito empreendedor de agricultores e pecuaristas, ao que se somou o êxito de modelos associativos como o cooperativismo. O impressionante desenvolvimento econômico do interior do Brasil é o tributo mais claro ao sucesso dessa estratégia, que foi verdadeiramente nacional.
TWE&L – A democracia muitas vezes é ameaçada por discursos de ódio e notícias falsas que comprometem o diálogo entre os poderes e polarizam a opinião da população. Como combater esse cenário?
DT – A revolução tecnológica pôs à disposição de forças sectárias e extremistas instrumentos poderosos de difusão de notícias fraudulentas e discursos de ódio e de intolerância. Essas forças aproveitaram-se da insatisfação de alguns setores da sociedade para mobilizar forças em torno de orquestrações antidemocráticas. A primeira ação é impor a lei e fazer valer a autoridade das instituições democráticas. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal adotou iniciativas como o inquérito sobre as notícias fraudulentas e as ameaças à Corte e à integridade de seus ministros e familiares. Em contatos que mantenho com interlocutores em diferentes partes do mundo, já se reconhece, no inquérito, a primeira resposta eficaz de autodefesa das instituições democráticas de um país da comunidade internacional. E esse país é o Brasil. Em nosso País, esse combate contou com o apoio majoritário da sociedade, o que foi fundamental na luta contra forças sociais de vocação autoritária.
TWE&L – Após a criação da TV Justiça, a sociedade brasileira começou a acompanhar mais amiúde os julgamentos da Suprema Corte brasileira e, em razão disso, ela passou a participar e opinar sobre questões jurídicas das mais simples às mais complexas. Isso tem levado a severas críticas quando as decisões não agradam à opinião pública. Quais os reflexos disso para a Justiça?
DT – Ter a transparência como norma é positivo, e isso é indiscutível no caso do Judiciário brasileiro, que apresenta níveis de transparência dos mais altos no mundo. Muito poucos países importantes do mundo podem dizer o mesmo. É natural que esse alto nível de exposição pública gere incompreensões. Mas essa realidade não deve servir como desestímulo, pelo contrário: precisamos estar atentos à dimensão da comunicação pública e à necessidade de apresentarmos nossos argumentos de forma clara e inteligível, explicando os fundamentos mesmo das questões mais complexas. Além disso, as cortes supremas e as cortes constitucionais exercem, muitas vezes, um papel contramajoritário, o que nem sempre agrada à opinião pública. Mas esse papel é imprescindível para os verdadeiros estados democráticos de direito, entre os quais se inclui o Brasil. As críticas fazem parte do cotidiano de democracias que se prezem. Temos que recebê-las com respeito e humildade. Falo em críticas, e não em crimes contra a democracia ou em orquestrações de caráter autoritário, os quais não são cobertos pela liberdade de expressão. Em tempos ruidosos como estes em que vivemos, nunca é demais fazer essa distinção.
TWE&L – A implantação do Plenário Virtual sofreu críticas e também elogios. De fato, quais os ganhos e quais as necessidades de melhoria do sistema?
DT – Em março de 2020, quando o STF adotou as primeiras medidas de prevenção da Covid-19, aprovou a Emenda Regimental no 53, possibilitando o julgamento virtual de todos os processos de competência do Tribunal. Considero que o funcionamento do plenário virtual, que existe desde 2007 e cujo escopo foi ampliado na pandemia, é uma prática brasileira que se destaca inclusive no cenário internacional. Se olharmos as respostas do STF à pandemia e se também compararmos com o cenário internacional, vamos ver que nossa Suprema Corte e o Poder Judiciário como um todo fizeram o dever de casa, em matéria de tecnologia, de transformação de métodos de trabalho e de capacitação de recursos humanos melhor que a maioria dos demais países. O STF adotou todas as medidas de distanciamento e não parou um dia sequer durante a pandemia.
O professor escocês Richard Susskind, autor do livro Cortes online e o futuro da Justiça, de 2019, propõe a adoção, em caráter experimental, de um modelo de funcionamento em plataforma virtual capaz de tornar mais eficiente a prestação jurisdicional. O Plenário Virtual do STF tem incorporado os principais elementos propostos por Susskind e demonstra, há anos, e especialmente nesta crise sanitária, ter um papel crucial nos resultados da Corte. Além de viabilizar a plena continuidade da prestação jurisdicional, possibilitou um aumento de produtividade. Somente em 2020, o STF proferiu cerca de 100 mil decisões, 18 mil delas colegiadas. Foram julgados, em 2020, 135 temas de repercussão geral, um aumento de 430% em relação a 2019.
E todas as inovações do Plenário Virtual consideraram a necessidade de se velar pelas prerrogativas dos advogados, com a realização de sustentação oral e de questões de fato, e pela máxima obediência aos princípios da publicidade e transparência. Mas, de fato, não podemos deixar de avançar. O aprimoramento dos julgamentos virtuais deve ser uma constante, e, sem dúvida, há espaços para aperfeiçoamentos, melhorias essas que serão frutos deste intenso período de aprendizado e de expansão dos horizontes da justiça digital.
TWE&L – O debate sobre corrupção ocupa muito tempo do noticiário, enquanto na prática a matéria de corrupção se relaciona a 0,03% de processos no Brasil. Como o senhor vê a questão dentro do processo democrático? Qual a importância de incentivar o debate e ao mesmo tempo focar a atenção em um judiciário mais ágil?
DT – Em democracia, o Brasil vem enfrentando problemas históricos e arraigados como a corrupção, diante dos quais há natural impaciência por mais e melhores resultados. Essa impaciência não deve, no entanto, prestar-se a excessos, tampouco a narrativas e orquestrações de inspiração antidemocrática. Não deve haver lugar para um revisionismo histórico que se proponha ignorar os muitos avanços institucionais e normativos, além dos ganhos concretos relevantes nesse âmbito, a partir da redemocratização no Brasil, inclusive se comparados com outros países importantes do mundo. E essas conquistas têm como base instituições fortes. Vejam que foram inúmeras as legislações aprovadas nas últimas décadas: lei de captação de sufrágio, lei da ficha limpa, lei da lavagem de dinheiro, lei de combate às organizações criminosas, que previu os acordos de colaboração premiada, lei anticorrupção e os acordos de leniência, lei da transparência, lei do acesso à informação, entre tantas outras.
Por isso, não me canso de repetir que o combate à corrupção no Brasil é resultado de um esforço institucional que produziu uma evolução normativa notável desde a Constituição, que envolveu os Três Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário. Não é obra de heróis, é obra da democracia.
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